14/04/2005

Primavera, Verão, Outono, Inverno e… Primavera, de Kim Ki-Duk

Coreia do Sul / Alemanha, 2003



Uma casa que é um templo que é uma ilha, isolada no meio de um lago. Um barco atracado que leva os personagens a chegar à outra margem. Um miúdo dorme, num quarto separado por uma porta mas sem paredes em volta. Um velho acorda-o, ele faz as suas orações. A certa altura, o miúdo decide divertir-se com os animais que encontra, na outra margem, depois de atravessar o lago. Peixe, sapo e cobra. Amarra-lhes uma guita com uma pedra na ponta. O riso do miúdo é contagiante.

Mas o velho vigiava-o de perto e aproveita a noite para amarrar uma pedra grande e pesada às costas do miúdo. Quando este acorda, queixa-se ao velho que lhe responde que também o peixe, o sapo e a cobra tinham dificuldades em mover-se e talvez tivessem morrido. Que se isto se tivesse passado com qualquer um deles, o miúdo transportaria o peso daquela pedra no seu coração para o resto da vida. Quando o miúdo percebe que apenas o sapo tinha sobrevivido, chora com mágoa.

Um arranque simples para uma história boa, que deve muito aos ensinamentos budistas. O filme desenrola-se também através de uma estrutura bastante simples: percorre as estações do ano mas arranca com espátula os momentos mais interessantes da vida de duas pessoas a viver no isolamento, uma criança que cresce ao longo da película e o seu tutor – dotado da sabedoria oriental que transmite ao garoto. É essa a sua luta.

O miúdo cresce então e aparece já jovem a ilustrar o Verão, segundo momento do filme. Chega-lhes a casa uma jovem, acompanhada da mãe, para que o Mestre a curasse. Este diz que o problema está na alma dela, que quando ela se libertar dele, ficará saudável. O jovem sente-se atraído por ela e, depois de alguns avanços prontamente reprimidos, os dois envolvem-se intensamente numa relação mais da carne do que do espírito.

Encontram-se às escondidas. A questão da porta, que antes parecia não passar de um apontamento de ironia, ganha aqui alguma importância. Velho, rapaz e miúda dormem no mesmo espaço, separados agora por duas portas. Certa noite, o jovem desiste de tentar abrir a porta do seu aposento, que partilha com o velho, para não o acordar e “atravessa” paredes... que não existem. As “portas”, mas sobretudo o facto de o jovem não se servir delas como havia feito até ali, sublinham a transgressão.

Mais tarde, o velho apanha-os, deitados no barco, à luz do dia, despidos e envolvidos no sono. Eles tentam desculpar-se mas o velho diz que apenas aconteceu o que é normal na Natureza. Pergunta à miúda se já recuperou, ela diz que sim. Terá de regressar para junto de sua mãe, diz-lhe ele então. O jovem revolta-se mas o velho alerta: a luxúria desperta o desejo de posse. E isso leva à vontade de matar. Palavras premonitórias num filme que sabiamente soube escapar ao moralismo barato.

Desconsolado, o jovem foge em procura da sua amada, deixando o velho para trás, que continua a sua vida serena e equilibrada, fazendo-se agora acompanhar de um gato. Mas é também aqui que começa o Outono. Certo dia, lê no jornal que o seu instruendo havia assassinado a mulher. O homem, agora com 30 anos, regressa, revoltado e violento. Que a sua amada se tinha enamorado por outro, apesar de lhe ter feito juras de amor.

Tenta o suicídio de forma simbólica, escrevendo “Fechado” em pedaços de papel e tapando com eles quatro dos seus órgãos sensoriais: olhos, nariz, boca e ouvidos. O velho apanha-o e aplica-lhe vergastadas nas costas. Um comportamento inusitado para um tutor que até então se revelara extremamente pacífico. Que só se explica pela repressão instintiva de qualquer acto suicida. De resto, não estamos no Japão, onde tirar a própria vida é um gesto até certo ponto aceite pela malha social e estimulado pela tradição. O teatro kabuki, a forma mais popular de arte dramática entre japoneses, mostra o suicídio de samurais e pactos de morte entre amantes. Também se sabe que muitos soldados nipónicos, confrontados com a derrota na Segunda Grande Guerra, escolhiam o suicídio para lavar a honra da pátria.

Percebemos que o velho prefere para o jovem a via do saneamento de responsabilidades à morte voluntária. Mas não deixa de o acusar pela rapidez com que havia tirado a vida a outra pessoa e por ter demonstrado incapacidade de acabar com a própria. Servindo-se da cauda do gato mergulhada em tinta negra, o velho desenha no soalho do exterior da casa um imenso conjunto de caracteres. Ordena-lhe que os entalhe com a faca do crime para sossegar a ira que tem dentro de si. Enquanto o faz, dois polícias aproximam-se do templo a fim de o deterem. O velho diz que primeiro terá de acabar aquilo.

Quando finalmente é levado, o velho fica de novo entregue a si. Recupera a forma simbólica com que o rapaz tentara suicidar-se mas vai mais longe: empilha pedaços de lenha no barco à deriva para se sentar sobre eles e junta em baixo uma vela para se imolar. Sublime forma de suicídio, com requinte e sem gemido de dor. Percebe-se que a sua missão na vida terminara com a detenção do jovem.

É Inverno quando o homem regressa ao local. Tenta reconstruir, tomar um rumo num local agora coberto de gelo e neve. Finalmente (re)encontra o caminho da espiritualidade, chegando a esculpir um Buda no gelo. Chega-lhe uma mulher, com a cara coberta. A sua identidade não é revelada mas traz uma criança nos braços. Na manhã seguinte, morre afogada ao cair num buraco feito no gelo.

Começa a desenhar-se um outro tempo, de regeneração. O homem amarra uma roca de pedra ao pé e, com muito esforço, sobe a montanha, colocando uma imagem do Buda no cume. O Sol começa então a raiar, o tempo muda, chega a Primavera. O homem, já formado e com calo, dá ensinamentos ao miúdo e novo ciclo começa. Das estações. Da vida. Bom, Yeoreum, Gaeul, Gyeowool, Geurigo Bom, no original, é uma magnífica obra de fundo encharcada de espiritualidade, em que a reprodutibilidade cíclica do tempo fere de morte os actores da vida. O ritmo da película é dado pela sucessão das estações, o que o torna intemporal, indispensável mas também impensável até este ponto.

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