25/10/2005

S&N - Homages EP

2005



Bully Records

Quando o facto de um rapper tão desprezível quanto 50 Cent encher o Pavilhão Atlântico serve para desembainhar considerações saloias sobre o público que vai lá vê-lo, apetece enterrar ainda mais a cabeça na areia. E continuar no processo de deslumbramento com coisas como Non-Prophets, David Axelrod ou Diplo. Que se lixe a Bíblia dos costumezinhos toscos daquela gente que descobre o hip-hop nos tiros que um rufia leva na cabeça ou abaixo da linha do abdómen e pensa que descobriu a verdade, a essenciazinha dessa coisa esquisita de metralhar rimas e preparar um bom beat.

No caso do tipo dos grandes concertos, as rimas não podiam ser mais básicas, o flow mais rasteiro nem a passividade / agressividade mais ensaiada. Alguém que dificilmente teve que lidar com a falta de saneamento básico ou água potável lá no bairro dele. Que se mete em barafunda e tiroteios porque quer ou os provoca. Não há paciência para miúdos mimados, com os peitos de pombo inchados pelos dólares que conseguem juntar, sem a mínima noção do que é pôr um disco no mercado e tentar chegar ao coração de alguém.

Só quem andou com a cabeça perdida pelo gangster dos tiros deixou passar o disco do ano passado de Sixtoo, um rapper canadiano que sabe misturar bem as linguagens da música contemporânea. Chewing on Glass & Other Miracle Cures era um assombro. A colaboração deste início de Outono com Norsola no EP Homages leva um pouco mais longe a sua vontade de romper as membranas que só existem na música, porque as pessoas são estúpidas como amibas dormentes.

Enfim, faltam as apresentações: Sixtoo é quem já se sabe, canadiano, produtor afamado na divisão do “toma e volta a baralhar”, com uma perninha no turntablism soturno e outra num break poderosíssimo em cuja bolsa criativa cabem músicos como Damo Suzuki (dos Can), Thierry Amar e Norsola Johnson; esta Norsola é a violoncelista dos Godspeed You! Black Emperor, que já tinha entrado no disco anterior e agora repete o feito neste soberbo sete polegadas.

Sixtoo assume a parte da electrólise, fazendo aquilo que tem vindo a fazer desde que aprendeu a girar discos: piruetas rítmicas, salpicadas por uma sensibilidade cinemática que faz de câmara de eco aos próprios sons que vai produzindo, reverberando-os, samplando-os e deixando o tapete sonoro cheio de franjas inacabadas e irreverentes. Norsola é a metade orgânica do duo, toca violoncelo, baixo e outra instrumentália não especificada. A soma das partes é uma coisa que só ouvida: um borrão na pintura obsoleta da música actual, um soco desferido no estômago dos maus alunos do hip-hop, o que quiserem.

Quatro temas chegam para estes arquitectos paisagistas mostrarem onde pára o downbeat quando leva um banho de instrumentos orgânicos e os cristais ficam à espreita. A imagem do arquitecto que tenta dar novas soluções ao espaço social / individual não é nova e decorre até, num desajeitado acto falhado, de um cruzamento de figuras mentais sugeridas quer pela capa de Chewing on Glass..., quer por “Old Days Architecture”, o oitavo tema do disco do ano passado – o primeiro que Sixtoo gravou para a Ninja Tune. A propósito, este Homages vem já pela Bully Records, uma casa que tem servido de morada a gente fresca como Mat Young, P Love ou Mat Kelly.

O disco evolui por atmosferas manifestamente down-tempo, aqui e ali com apontamentos de percussão (alguma percebe-se viva, outra sabe-se gravada). Ainda: ganchos rítmicos de oscilação variável e linhas retorcidas. Voos nocturnos próprios para o descompensar da actividade nas horas mais tardias. Planos rasantes de brinde entre discursos do gira-discos e sons colhidos nas sementeiras. A grafonola da capa remete para uma toada ligeiramente retro do animal criado. Ora, se for para ter alguém como 50 Cent a fazer a festa, até é bom que não haja circuito de concertos de hip-hop em Portugal. Pelo menos, não se lixa a cabeça dos putos com uma fabricação mercantil sem brilho nenhum. Homages, pelo contrário, é uma estupefacção.

http://www.bodyspace.net/album.php?album_id=522

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