21/11/2005

Boards of Canada - The Campfire Headphase

2005

Warp

Os Boards of Canada ocupam um lugar quase mítico nas consciências de algumas pessoas cujas preocupações ultrapassam, em muitos quilómetros, o perímetro do seu bairro. Conhecemos a Escócia dos canais, dos kilts, do calão e do Loch Ness, mas também dos Mogwai e dos Belle & Sebastian – esqueçam os Franz Ferdinand! (Há por estas noites de Inverno um senhor que se senta num banco de jardim da Avenida da Liberdade e toca gaita de foles... Apetece perguntar se é escocês e se gosta do bife bem ou mal passado. Por detrás de cada rosto há uma história para contar e é sempre tentador interagir com a fauna humana que vive sob o manto cinzento da urbe.)

Não sabemos o que levou Michael Sandison e Marcus Eoin a juntarem-se e chamarem casa à costa norte da Escócia, uma franja de terra confinada entre o Mar do Norte e o Oceano Atlântico. Na verdade, não se sabe muito sobre os Boards of Canda (BoC) para além dos discos e das colaborações que vão mantendo no campo sideral das remisturas (confira-se, a propósito, o brilho sujo de “Dead Dogs Two”, original dos cLOUDDEAD, revisto por Michael e Marcus. That’s fucking beautiful, lad!). Há uma espécie de lei da rolha a vigorar, um black out que leva os admiradores e as línguas viperinas pelos caminhos da especulação lunática.

Passar sete anos sem editar mais do que três discos é também um bom reagente que ajuda na combustão de distorcidas visões da coisa. A proporção pode não ser comparável à taxa de reprodução de coelhos em idade adulta, mas se atentarmos no mercado extra-LP, temos uma boa meia-dúzia de estremosas edições – desde o inaugural Twoism a In a Beautiful Place out in the Country, o EP que esteve entre a edição de Music Has the Right to Children e Geogaddi (sem esquecer, claro, as inevitáveis Peel Sessions, de 1999).

Acontece que o duo escocês começou do nada absoluto, que é por onde começam, com honrosas excepções, as bandas que nunca poderão ser confundidas com uma sopa expresso. Era o ano de 1996 e os embrionários BoC gravavam canções a um ritmo masturbatório quando se associaram ao selo Skam, já na altura afamado pelo vínculo à electrónica e ao experimental. Seguiram-se edições menores mas os rabinhos já se voltavam para a Lua ao fazerem primeiras partes de Autechre e Plaid. Em 1998, Music Has the Right to Children veio encerrar a discussão sobre qual seria o álbum maior que conjugasse um hip-hop minimal com umas subtilezas downtempo, uns pozinhos de trip-hop e duas pitadas de dope. Tinha sido criado e estava ali. Não foi há muito tempo mas desde então tem havido cópias obtusas da fórmula testada. Mas falta-lhes a minúcia (oh, a minúcia!), o jeito para a produção, para o constante alijar de velas vergadas por um vento lunar.

O travo essencialmente ambient, com ocasionais beliscões menos hip que hop, de Music... e depois de Geogaddi faria talvez prever um disco de toca e foge, de revisão da matéria dada e salto no precipício que se abre quando se fala da música da contemporaneidade. Mas não, não é isso que ouvimos neste The Campfire Headphase. Aquilo se ouve é até um nadinha obsceno: ouvem-se, aqui e ali, guitarras desfraldadas, sem make-up tecnológico. Antes de gritarem “vendidos”, tentem encontrar um padrão no percurso dos BoC. Pois, é difícil. Agora tentem não manter a boca aberta enquanto ouvem “Chromakey Dreamcoat”, um registo próximo do chill-out tardio, já quando a manhã espreita, seguido de curtíssimos samples do que parece ser uma televisão, mais lá para o fim.

É a isto que deve soar a entrada no cérebro de Kevin Shields: uma base instrumental sublime e limpa e umas migalhas de voz manipulada para não se ficar a conhecer o emissor. E o rigor do sample, sempre oportuno, seja a chuva no início de “Satellite Anthem Icarus”, o choro de uma criança ou as programações de uma idade pré-cibernética em “’84 Pontiac Dream” e “Oscar See Through Red Eye”. ”Soft like there’s silk everywhere”. Isso. Ou música de elevador numa estação espacial, aumentada por um glitch soltinho como arroz malandro (especialmente em “Peacock Tail”). The Campfire Headphase é uma escultura de gelo ao detalhe com ligeira inflexão na procura da melodia. É que os BoC são tudo menos orelhudos e isso nem sequer interessa aqui.

Com óbvias diferenças (até, ou sobretudo, estilísticas), mas de certa forma nos BoC podemos ver os Kraftwerk da nova geração. Não deixem de mostrar este disco aos vossos filhos quando eles buscarem referências na cultura pop da altura ou no formato para que tiver evoluído o telelixo. Passados alguns anos, eles saberão como agradecer.

http://www.bodyspace.net/album.php?album_id=540

11/11/2005

Yip-Yip - Pro-Twelve Thinker

Strictly Amateur Films

Rating: 4/10

Although this record definitely doesn’t knock me off my feet, it may be worth a listen by all those noise lovers out there. Formed by Brian Esser and Jason Temple in Longwood (a suburb of Orlando), Yip-Yip may be regarded as the new acquisition in the world of a certain art form that finds its G-spot near a multitude of keyboards and synthesizers.

First self-released as a CD-R in 2003 and limited to 300 copies, Pro-Twelve Thinker is now re-issued on Strictly Amateur Films. I don’t know about you, dear reader, but I could go to sleep without all these disassembled gushes of notes, spilled as if “harmony” and “rhythm” were not words of their dictionary. I wouldn’t go as far as stating that this music is structure-less - because it does have one - but theirs is rather difficult to ascertain.

Probably poured into a hiss-swamped tape recorder, “100 MPH Checker Champ” is a pictorial map of noise, pulling hard at the very fabric of the song (wait; let’s call it a ‘piece’ or whatever, not song). A handful of tracks later and there comes the obnoxious “High Heel to Mammal”, which sounds like a serrated knife chopping your arm off, with all its blips chiming in agonizing pain. Undoubtedly, the problem with this album is that it barely gives itself oxygen, placing a turbine of resounding paraphernalia at the helm most of the time.

Constant reruns of Pro-Twelve Thinker induce terrible headaches and a sense of animosity toward the outside world; a regular human being needs some puffs of fresh air to breathe. I can only hope that one day this noise-related scene will become out of vogue, and out of the renewed ghetto will emerge a refilled set of bands, willing to please themselves as well all music enthusiasts. Until then, I shall put this out to temporary pasture, and that’s the best I can do.

But find out for yourself and your tolerances: you may find this as remarkable a statement as Marvin Gaye’s languid howl on “Sexual Healing”. That’s the beauty of music, and certainly that of noise and whatnot. That being said, the naïve, childish drawings inside its liner notes are inspired.

http://www.lostatsea.net/review.phtml?id=14328884994371dfa4e8dab

08/11/2005

Daedelus - Exquisite Corpse

2005



Mush

Tempo de levar a castanha ao braseiro que o Outono já vai alto. Por cá, está encontrado o disco bricolage do ano. De martelo impressionista em punho, Daedelus, natural de Santa Monica (EUA), parte pedra ao quarto álbum e faz-se acompanhar de uma equipa de emcees que puxam o lustro a um hip-hop que nasceu torto e não é certamente desta que se endireita. Exquisite Corpse é um esqueleto no armário que, apesar da aparência baça e fétida, conserva os olhos esbugalhados da carne que um dia lhe deu vida. Ou seja: é hip-hop de divã, em permanente tentativa de descoberta das linhas com que se cosem as entranhas.

A colaboração com MF Doom, o Homem da Máscara de Ferro, – o tema “Impending Doom” – parece um comercial ou uma sitcom fatela dos anos 20 ou 30 do audiovisual norte-americano e acaba a renegar a tradição mastigada do transformismo desenxabido em que o hip-hop se perdeu quando foi às putas do mercantilismo e se deixou ficar no bordel. Num trabalho em que só um terço das canções não tem convidado, a celebração acontece naturalmente num rés-do-chão esquerdo de um prédio dos subúrbios, quando as rádios especializadas só dão importância ao grime que vem de Londres.

“Just Briefly” não podia ser mais desconstrucionista no seu intento de andar às fisgadas aos pardalecos parolos e parvos (olhem a métrica, miúdos!) que andam a enganar os outros com deboches sensaborões. Nesse sentido, o número soa a DJ Shadow e coloca-se ao lado dos servidores da causa romântica do traquejo rap que anda para a frente, rap de rapina e não de rapsódia manhosa que mete gajas seminuas e álcool mais do que a conta.

“The Crippled Hand” parece assombração que só um copy/paste permissivo deixa nascer: carregadinha de swing (“lots, lots of swing”, para a comunidade jazz), esta faixa é o abraço da paz. Ou não tivesse já Mike Ladd, que assina um dos dois “Welcome Home” do disco, provado que isso era possível (e recomendável) no Negrophilia deste ano. As primeiras boas-vindas a casa são dadas por Scott Herren sob o cognome Prefuse 73 Danse Macabre, produção anti-lounge, nublada, difícil, bonita, que só funciona na região demarcada onde coabitam ele mais uma meia dúzia de iluminados, como Luke Vibert ou mesmo Boards of Canada.

Depois do reencontro com velhos amigos dos headphones, acontece o vislumbre do pânico. Enfim, no melhor pano cai a nódoa. Os TTC são franceses e fazem de “Cadavre Exquis” uma latinada que provoca indigestão. Só a piada de ouvir rappar na língua de Edith Piaf salva a coisa. A fechar, “Thanatopsis” entra em fulgurante contra-ciclo, baralhando a lógica dos temas anteriores e inscrevendo os que chegaram até aqui num tribalismo emancipado e emancipador.

Exquisite Corpse é uma Pompeia prestes a sucumbir à força dos vulcões da crítica mais conservadora. Pode até ser olhado como o pior pesadelo do escriba acometido pela preguiça mais castradora mas, para os admiradores, será sempre um soufflé de uma natureza rítmica diversa e desafiante. O mundo está a precisar de discos assim.

http://www.bodyspace.net/album.php?album_id=528