2005
Warp
Os Boards of Canada ocupam um lugar quase mítico nas consciências de algumas pessoas cujas preocupações ultrapassam, em muitos quilómetros, o perímetro do seu bairro. Conhecemos a Escócia dos canais, dos kilts, do calão e do Loch Ness, mas também dos Mogwai e dos Belle & Sebastian – esqueçam os Franz Ferdinand! (Há por estas noites de Inverno um senhor que se senta num banco de jardim da Avenida da Liberdade e toca gaita de foles... Apetece perguntar se é escocês e se gosta do bife bem ou mal passado. Por detrás de cada rosto há uma história para contar e é sempre tentador interagir com a fauna humana que vive sob o manto cinzento da urbe.)
Não sabemos o que levou Michael Sandison e Marcus Eoin a juntarem-se e chamarem casa à costa norte da Escócia, uma franja de terra confinada entre o Mar do Norte e o Oceano Atlântico. Na verdade, não se sabe muito sobre os Boards of Canda (BoC) para além dos discos e das colaborações que vão mantendo no campo sideral das remisturas (confira-se, a propósito, o brilho sujo de “Dead Dogs Two”, original dos cLOUDDEAD, revisto por Michael e Marcus. That’s fucking beautiful, lad!). Há uma espécie de lei da rolha a vigorar, um black out que leva os admiradores e as línguas viperinas pelos caminhos da especulação lunática.
Passar sete anos sem editar mais do que três discos é também um bom reagente que ajuda na combustão de distorcidas visões da coisa. A proporção pode não ser comparável à taxa de reprodução de coelhos em idade adulta, mas se atentarmos no mercado extra-LP, temos uma boa meia-dúzia de estremosas edições – desde o inaugural Twoism a In a Beautiful Place out in the Country, o EP que esteve entre a edição de Music Has the Right to Children e Geogaddi (sem esquecer, claro, as inevitáveis Peel Sessions, de 1999).
Acontece que o duo escocês começou do nada absoluto, que é por onde começam, com honrosas excepções, as bandas que nunca poderão ser confundidas com uma sopa expresso. Era o ano de 1996 e os embrionários BoC gravavam canções a um ritmo masturbatório quando se associaram ao selo Skam, já na altura afamado pelo vínculo à electrónica e ao experimental. Seguiram-se edições menores mas os rabinhos já se voltavam para a Lua ao fazerem primeiras partes de Autechre e Plaid. Em 1998, Music Has the Right to Children veio encerrar a discussão sobre qual seria o álbum maior que conjugasse um hip-hop minimal com umas subtilezas downtempo, uns pozinhos de trip-hop e duas pitadas de dope. Tinha sido criado e estava ali. Não foi há muito tempo mas desde então tem havido cópias obtusas da fórmula testada. Mas falta-lhes a minúcia (oh, a minúcia!), o jeito para a produção, para o constante alijar de velas vergadas por um vento lunar.
O travo essencialmente ambient, com ocasionais beliscões menos hip que hop, de Music... e depois de Geogaddi faria talvez prever um disco de toca e foge, de revisão da matéria dada e salto no precipício que se abre quando se fala da música da contemporaneidade. Mas não, não é isso que ouvimos neste The Campfire Headphase. Aquilo se ouve é até um nadinha obsceno: ouvem-se, aqui e ali, guitarras desfraldadas, sem make-up tecnológico. Antes de gritarem “vendidos”, tentem encontrar um padrão no percurso dos BoC. Pois, é difícil. Agora tentem não manter a boca aberta enquanto ouvem “Chromakey Dreamcoat”, um registo próximo do chill-out tardio, já quando a manhã espreita, seguido de curtíssimos samples do que parece ser uma televisão, mais lá para o fim.
É a isto que deve soar a entrada no cérebro de Kevin Shields: uma base instrumental sublime e limpa e umas migalhas de voz manipulada para não se ficar a conhecer o emissor. E o rigor do sample, sempre oportuno, seja a chuva no início de “Satellite Anthem Icarus”, o choro de uma criança ou as programações de uma idade pré-cibernética em “’84 Pontiac Dream” e “Oscar See Through Red Eye”. ”Soft like there’s silk everywhere”. Isso. Ou música de elevador numa estação espacial, aumentada por um glitch soltinho como arroz malandro (especialmente em “Peacock Tail”). The Campfire Headphase é uma escultura de gelo ao detalhe com ligeira inflexão na procura da melodia. É que os BoC são tudo menos orelhudos e isso nem sequer interessa aqui.
Com óbvias diferenças (até, ou sobretudo, estilísticas), mas de certa forma nos BoC podemos ver os Kraftwerk da nova geração. Não deixem de mostrar este disco aos vossos filhos quando eles buscarem referências na cultura pop da altura ou no formato para que tiver evoluído o telelixo. Passados alguns anos, eles saberão como agradecer.
http://www.bodyspace.net/album.php?album_id=540
21/11/2005
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
1 comentário:
Rei, és o meu rei. Aprecio como a tua escrita se afeiçoou às bordas curvas.
Enviar um comentário