2005
Leaf/Flur
Ouvir música ao deitar pode ter um de dois efeitos. Ou se assemelha àquelas pessoas que quebram o contrato social do silêncio no cinema, ou serve de acelerador de partículas nos sonhos. Nas vésperas de se escrever ou falar sobre A Hawk and a Hacksaw, pôr In the Aeroplane Over the Sea a tocar pode ajudar no processo de configuração dos laços de sangue que existem entre este projecto emergente e os Neutral Milk Hotel. Há qualquer coisa de geográfico no disco maior de uma das mais citadas formações dentro da divisão estranhíssima da folk encharcada de fuzz em marcha nupcial e/ou fúnebre. Na última audição, canções como “The King of Carrot Flowers”, “Two-Headed Boy” e “Communist Daughter” recordaram como foi estar a milhares de quilómetros de casa, num país frio e com distintas referências culturais.
Os Neutral Milk Hotel têm um espaço particular na cabeça de quem os ouviu, que é capaz de dizer onde estava e o que sentiu ao recuperar o disco. Sabemos que isto na música contemporânea está para modas - pois que assim seja -, mas desde já fica o aviso: os Neutral Milk Hotel valem mil Arcade Fires. Por isso, é natural que um segundo disco (normalmente, apontado como decisivo para a continuidade das coisas novas ou para a certidão de óbito passada na praia) de alguém que esteve ligado umbilicalmente aos aduladores de Anne Frank seja aguardado com a mesma ânsia e a mesma ascese – tudo no mesmo corpo – usadas para aguentar a demora das últimas pinguinhas que caem num urinol público. Aqui há ainda um sentimento comunal, fica esclarecido o amigo leitor que é para saber ao que vem, mas é sobretudo uma comunidade de festarola, que joga com cambiantes étnicos e geográficos. Música sim, e a incitar à marcha também, mas música de feira popular, de carrossel. Música de palhaço triste.
Um diálogo das nações que enche o mundo de músicas (do mundo) sujeitas ao crivo de Jeremy Barnes, que é como quem diz ao acordeão do baterista do álbum maior daqueles senhores lá em cima. O homem disse um dia que sempre quis ser um homem-orquestra no sentido mais tradicional e acústico do termo. É um pouco isso que se passa aqui, ao segundo volume, sendo que o primeiro, homónimo de 2002, andou arredado do mapa mental de grande parte de promotores e críticos. Sem ser ofensa, temas como “A Black and White Rainbow” podiam ser cançonetas arrancadas aos trôpegos indigentes que fazem a vida no metropolitano. Mas têm uma tal universalidade que só um espírito viajante pode conceber. Não se ouvia música tão afectada e agregadora de linguagens desde que o colectivo de jazz yeah NO lançou Swell Henry no ano passado.
Barnes vai um pouco mais longe no processo de sedimentação de culturas e influências ao assediar uma canção tradicional da Transilvânia em “Laughter in the Dark”, ao visitar os Balcãs em “Europa”, ao dar um salto ao Leste Europeu em “Pastelka on the Train”, e regressando depois à pátria que o pariu e estacionando em Portland, na derradeira “Portlandtown”, de onde se desprendem umas notas de piano a reagir com um banjo acelerado. Mas o acordeão é, sem dúvida, a peça de encaixe de todas estas composições graves, cola que une sem uniformizar ou embrutecer. Dá espaço para os outros instrumentos, como a harpa executada pela mãe de Barnes, e só perde andamento em “Goodbye Great Britain”, que é um número contemplativo, de reverência aos assomos de glitch que andam a impressionar muita gente. Em “The Water Under the Moon” vêm à memória as imagens de Um Violino no Telhado, mas também as das calçadas de Paris sugeridas por Yann Tiersen.
Esse tema e o seguinte, “Our Lady of the Vlatva”, são como interregnos, pausas para descompressão, curtinhos interlúdios no desdobramento cinescópio que é o resto do disco. Este último tem, aliás, uma voz feminina travestida de amarra, anzol, isco lamacento, enfim o registo longínquo, espécie de canto de sereia, de Heather Trost, que também toca violino no álbum. A embriagar os navegantes, a fazê-los abeirar-se do abismo. Gravado numa igreja no coração da Inglaterra e também na Albuquerque natal, Darkness at Noon (belo título) é um disco vagante que abre espaços, percorre trilhos, encharca-se de tipologias de vários pontos cardeais mas que é capaz de aglomerar mais um pouco, de conter mais uma nota. A Hawk and a Hacksaw, designação pilhada de uma tradução do Dom Quixote de Miguel de Cervantes, é confluência de cheiros e coordenadas. Como o são algumas das bandas em que esteve envolvido Barnes, mais os Guignol e menos, por exemplo, os Now It’s Overhead ou Oliver Tremor Control. Caleidoscópio de formas de recorte neotradicionalista que passa n’ O Meu Mercedes É Maior Que o Teu, no Porto, a 10 de Junho, e na Zé dos Bois, em Lisboa, no dia seguinte. A ampola fez mesmo “pop”.
27/05/2005
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