Bélgica / França, 1999
Um filme que se serve do close-up e da câmara nervosa para entrar nos personagens e não lhes deixar espaço de fuga. Rosetta é uma menina que faz as vezes da mãe, alcoólica que não quer deixar a bebida, pêga envergonhada prontamente repreendida pela filha. A relação entre as duas é tensa desde o início, com a miúda a ditar as leis e a exigir coisas da mãe. O auge acontece quando, lutando para se libertar da filha que a queria no centro de reabilitação, a mãe a atira para um lago coberto de lodo e foge, apesar dos gritos da miúda e do risco de vida que corre.
Não se vêem mais até ao final. Rosetta vai dormir a casa de um rapaz que conhecera numa roulote que vendia gaufres. Despedida da fábrica onde trabalhava, logo na sequência inicial, ela quer ter um emprego, mas um emprego à séria. Nessa noite, jantam juntos e o rapaz mostra-lhe as gravações de bateria que tem, "a única coisa que faço mais ou menos bem", a solo ou no que quase parece uma big band de garagem. O rapaz arranja-lhe onde dormir em sua casa. Émilie Dequenne, no papel da protagonista, tem das interpretações mais brilhantes, ao deitar-se e proferir os seus mandamentos, primeiro na segunda e depois na primeira pessoa do singular.
Quer uma vida normal, encontrar um amigo, um emprego, "não vou cair na merda" e dá-se as boas noites. Rosetta cumpre vários rituais, como o de esconder as botas no mato ou o de apanhar trutas com uma garrafa com o fundo cortado. Numa dessas pescas, devolve o peixe ao lago porque, quando o rapaz se aproxima, pensa que são os guardas do acampamento. Ao ajudá-la, o rapaz cai no lago e debate-se desesperadamente para de lá sair, clamando por ajuda. Rosetta demora-se e quase o deixa afogar. Depois sabemos que desejava que ele morresse, ela própria lho confessa, para ficar com o seu emprego.
Afastada temporariamente depois de três dias a trabalhar na confecção dos gaufres, dirige-se ao patrão e acusa o rapaz de lucrar com gaufres feitos em casa, que vendia juntamente com os outros. O patrão despede-o e chama para o seu lugar Rosetta. Mas a consciência pesa e, passado algum tempo, liga ao patrão para dizer que não volta. Tranca-se e à mãe que encontrara, inconsciente, junto à roulote onde viviam e tenta matar-se (e à mãe) abrindo a torneira do gás. Mas o gás acaba-se e ela tem de ir comprar outra bilha. No caminho de volta, atravessa-se à frente dela o motociclista salvador, aquele a quem ela tinha roubado o emprego. Aí ela mostra um olhar perdido, quase quase arrependido e o genérico final passa sem som.
Rosetta é um filme que reinstala, ou melhor agrava, aquele sentimento de perda quando, após um filme, tentamos religar-nos à realidade. Termina com um plano desesperado de uma menina, que finalmente chora. Para essa sensação de desnorte contribui também o genérico final, a ficha técnica que passa em silêncio, sem a habitual trilha sonora. A tornar mais surdos os passos de regresso a casa, depois do cinema.
Antes da exibição do filme, os cinemas Ávila tinham alinhada na passada sexta-feira a curta-metragem O Pedido de Emprego de Pedro Caldas, que data de 1999. Há um longo plano-sequência em que as actrizes Sylvie Rocha, a entrevistada, e Lucinda Loureiro, a entrevistadora, conversam. Uma entrevista que revela muito da aspirante ao lugar, que tenta esconder um passado de drogas e a custo agarrar-se ao lugar.
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