China / Itália / França / Hong Kong, 2004
Em 2046, o mundo está atravessado de carris. Todas as recordações são rastos de lágrimas que nos reenviam para o passado e de volta ao presente, como um pêndulo. Para resolver situações incompletas, pendentes. Os segredos não se dizem senão às árvores, como antigamente. Antes, as pessoas escalavam uma montanha, abriam um buraco numa árvore e nele deixavam o segredo, que era depois coberto com lama.
Mas porquê deixar 2046? A resposta é vaga, sempre. Para que nunca se levante a ponta do véu que esconde os nossos segredos mais íntimos. É ao ritmo deles que o novo filme de Wong Kar-Wai se desenrola. Alguém vai adiantando que deixou no passado alguém que não sabia se o amava. Toma o comboio para o passado.
O filme vai-se escrevendo a si, enquanto Chow martela caracteres de uma história que ora é sua, ora se confunde com a mise en scène de outros personagens, numa teia de relações que se adensa à medida que se entra mais fundo no passado que ficou lá trás. Ele, o protagonista, foi em tempos jornalista e é agora escritor afamado que fala de sexo porque tem de ganhar a vida. Os romances de samurais não dão para as suas extravagâncias.
Tem cabelo à escovinha, na melhor tradição xunga de galã de feira, carregado de brilhantina e bigode com recorte à chulo. E a sua caracterização física fica porque ajuda à compreensão da sua persona. Regressa a Hong Kong por altura dos motins de 1966. Fica num hotel, no quarto 2047, porque ainda era preciso limpar o 2046. Enfim, a simbologia dos números a marcar datas, a definir horizontes de partida e chegada. Afinal, nesse quarto tinha sido assassinada, na véspera do seu check-in, uma mulher com quem havia sido íntimo, às mãos de um namorado ciumento. Isso ele não era.
Miss Wang, uma das filhas do proprietário do hotel, namora com um japonês mas a relação não é autorizada pelo pai. A Segunda Grande Guerra e isso... A ópera serve para abafar as discussões. Ela foge e, quando regressa, é Chow quem recebe e lhe entrega a correspondência para evitar a censura do pai. Chow mantém uma relação física intensa com Bai Ling, mulher fogosa e tal. Mas quando ela se abre com ele e se lhe entrega, ele diz-lhe que prefere venda a retalho. As palavras são pesadas mas coerentes com a sua figura de besta machista. Paga cada encontro com uma de 10 na moeda deles.
Mas é ele próprio que reconhece que o amor é questão de oportunidade. E aí quebra-se o galho da resistência e sente-se alguma empatia com o animal. De nada lhe serve voltar a Singapura para reencontrar a sua Su no corpo de uma outra Su, a Aranha Negra do casino. A véspera de Natal é uma questão decisiva neste filme, como sendo a pior noite para se estar sozinho. Ele falhou uma, a de 1969, e não se encontrou com Bai.
Voltamos ao futuro apesar de nunca ninguém ter regressado de lá para contar. O viajante do comboio encontra uma andróide com reacções retardadas. A proposta de amor fica sem resposta, ele culpa o atraso dela mas não é isso. Outra vez, a questão da oportunidade. Ela amava outro, seu igual, quem sabe. Há a certeza de que de nada serve encontrar a pessoa certa antes ou depois da altura certa.
A certa altura, o filme começa a mastigar, apresenta poucos dados novos por centímetro de fita. E aquilo até já vai longo, chega a ultrapassar em poucos minutos as duas horas. Era atalhar um pouco mais a história e o filme ficava maior. Pois, maior a dar para o melhor.
21/04/2005
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