2004
Sickroom Records
Já Bocage não sou, dizia o poeta. Mas não é só de palavras caídas em papel imaculado, veneradas pelos doutos senhores das academias, que vive este mundo. Há uma parte suja, descalça, miserável que cresce na periferia das grandes cidades, dos arranha-céus e das multinacionais. Esse meio-mundo passa metade da vida a lixar os teoremas dos bem pensantes, a comprometer as cabecinhas esclarecidas. Havia em tempos, é coisa de uns valentes dez anos para trás, uma cena que encheu os coraçõezinhos dos adolescentes de um fulgor pouco habitual para uma indústria habituada aos longos cabelos do metal sem mioleira. Há aqui e ali tentativas de revivalismo, mas a fruta está podre antes de cair. A intensidade de Ícaro ficou lá na costa ocidental dos Estados Unidos, nunca foi verdadeiramente trazida.
Steve Albini foi um maldito desse tempo, na pele de produtor – apesar de odiar a designação – e a encimar projectos como Big Black, o mais citado, Rapeman, o mais fugaz, e Shellac, o que ainda existe passados treze anos. Em comum têm a crueza de um indie rock sem contemplações que muito deve a um engenheiro de som que não pode com hippies e tem fama de possuir mau feitio. Contas feitas, é a exploração da arte pela arte, sem máquinas registadoras a acumular cifrões e estafetas despedidos ao primeiro deslize orçamental.
Find the Sun é um disco preso por pinças que vive em permanente estado de emulsão, de suspensão, por um trio (power trio foi outro dos conceitos minuciosamente explorados quando era cool usar ténis sujos) baseado em Chicago. Os Bear Claw estão tão ocupados na sua senda revisionista do som que matizou o início dos anos 90 que até esquecem – sabemos que conscientemente – que os tempos, os tempos estão a mudar. Soam datados e decisivamente retro, quase, quase jurássicos. Tudo isto soa nostálgico, sujo, bonito.
Uma formação que se apoia em dois baixos, engrandecidos pelo savoir faire de Albini, uma bateria que serve para demarcar linhas de expansão e gravidade, enfim uma voz que fica a metade do percurso entre o pugilato da dupla MacKaye/Picciotto e o rasganço carregadinho de glam de uns Black Halos postos a descongelar ao sol. São as coordenadas possíveis de um sonho acompanhado de erecção de quem passou a adolescência a cantar frente ao espelho que se é feio mas não faz mal.
“Repetition” assusta à primeira, parece daquelas palavras de ordem gritadas ao megafone e que nada dizem, tipo “a revolução não passa na televisão”, comissariadas por tipos neoburgueses que usam ténis Adidas e que, um dia ou outro, se lembram que ir para a rua fingir que se é grande de espírito fica bem. Mas depois aquilo compõe-se, não é hino para desbravar mato, é só prelúdio para uma revolução que se assemelha a mijo de tão estagnada e nunca acontece. Rich Fessler e amigos sabem-no, felizmente. Mas também quem acredita ainda numa reedição de “Smells Like Teen Spirit” para ajudar a pensar?
A coisa fica ali, pela rama, na costa dos murmúrios, dos pregadores de chinelo que sabem que são inúteis os passos que dão. A resistência é ainda a melhor forma de agir. “Jigsaw” quer voar, soltar-se dos cânones definidos ao primeiro tema, mas é só a seguir, em “One Ending”, que a pulsação aumenta, que as veias latejam mais, que o ácido começa a ferver nas cordas e faz soltar as pregas da voz. Mais lá para o fim, “832” é o número mais punk rock, a pôr a chave na ignição da galáxia Dischord, e a martelar, sublime, “I want you to die”. Pragmática mas circunstancial entorse na economia do álbum.
Claro que tudo isto há-de repugnar as bestazinhas acríticas, que têm o juízo ciosamente formatado pelos media de grande circulação. Mas delas não reza a história. Dos Bear Claw também não mas um exercício crítico sincero, que caiba ou não fisicamente num disco, sempre dá para dormir descansado.
http://www.bodyspace.net/album.php?album_id=432
27/04/2005
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