A vida tem destas coisas e a música, como parte da vida, também não respeita muito o relógio dos comuns mortais. Depois de cantar ao lado de Nat King Cole e de Edith Piaf e, a nível local, com o Cuarteto d'Aida e a Orquestra Aragón, Omara Portuondo planeava aligeirar o ritmo de trabalho em meados dos anos 90. Mas em 1995, Ry Cooder andava por Cuba e ouviu a sua voz feminina mais bonita e que era, à época e para muitos, o segredo mais bem guardado pelo regime de Fidel Castro.
De facto, só depois de participar no filme "Buena Vista Social Club", de Wim Wenders, com Cooder no papel de repórter apaixonado, é que o mundo se rendeu aos encantos de Omara. O trabalho permitiu também resgatar de um injusto esquecimento as carreiras de Ibrahim Ferrer, do guitarrista Compay Segundo, do pianista Rubén González (e em boa hora o fez porque estes três já morreram) e do guitarrista Eliades Ochoa (que, ainda no Verão de 2008, passou pelo Grande Auditório do CCB).
Já com 60 anos de carreira, Omara lança agora um disco que soa a despedida ou, pelo menos, a um agradecimento profundo e sentido - ou não fosse ele intitulado simplesmente "Gracias". É uma dor de alma rever as imagens do filme de Wenders quando ela se passeava, fresquíssima, pelas ruas da sua Havana natal e compará-las à capa deste disco. Aqui, ela surge com um ar mais sereno, ainda muito segura de si, sentada num banco de jardim, de onde caem malmequeres murchos. Tudo no álbum cheira a retiro, a uma reforma que se adivinha e que, felizmente para o mundo, já leva uma boa década de atraso.
Em apenas duas canções, Omara mostra ao que vem: ela narra as suas próprias vivências e dores em 'Yo Vi' e chega a assustar quando profere as palavras 'Adiós Felicidad'. A voz de Chico Buarque salpica de uma alegre bossa nova os tons até então cinzentões do disco, mesmo quando canta sobre a "romaria dos mutilados" e a "fantasia dos infelizes" na belíssima 'O Que Será (À Flor da Terra)'. Mas "Gracias" é definitivamente um disco de Outono ou, quando muito, de fim de estação, de reunião à frente da lareira e de contos de ninar, como no comovente 'Cuento Para un Niño', composição crua e económica, feita somente de cordas e voz.
Segue-se a luminosa colaboração em 'Ámame Como Soy', em que Omara partilha o microfone com Pablo Milanés, histórico fundador do movimento reformista da canção popular cubana, que em finais dos anos 60 ficou conhecido como "nueva trova". Mais à frente, há o tema-título repartido com o uruguaio Jorge Drexler e que tem tudo para se transformar numa canção emblemática de Omara. É também aqui que ficam desfeitas as dúvidas sobre a vontade da senhora em cantar um tributo às gentes que a inspiraram. Ainda há dois anos, ela garantia estar a ser perseguida pelos fantasmas de Ferrer, Segundo e Gonzáléz, enquanto se mostrava grata pelos palcos e momentos partilhados.
Ao cair do pano, 'Nuestro Gran Amor' assoma aos ouvidos como a peça mais delicadamente jazz do álbum, muito por causa do baixo cubano de Cachaíto López e das teclas igualmente cubanas de Chucho Valdés. Depois, ainda roda 'Lo Que Me Queda Por Vivir', onde se percebe uma ligeira herança do Médio Oriente, e finalmente 'Drume Negrita', que põe a nu a quente elasticidade das peles afro-cubanas, com a ajuda do camaronês Richard Bona. Ora, se este não é o derradeiro disco de Omara, é provavelmente aquele que ela quererá deixar em testamento. E tudo isto é triste, tudo isto existe mas não é fado.
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