28/02/2009

as sandálias

Habituei-me a escrever enquanto seguro e aperto o coração com uma das mãos. Tudo o que escrevo é, por isso, carregado de excesso. Nem tudo o que escrevo é verdadeiro, obviamente. Experimentem escrever com o coração descompassado, comprimido e a pingar sangue e vejam se falam sempre verdade! Só tento ser brutalmente honesto quando sei que não poderei sê-lo nem um pouco. Os meus últimos dias interiores pareceram um foguetório de província: rebentaram-se-me na cara com estrondo mas não chegaram a inundar-me de luzes e cores e efeitos bonitos. Na terça-feira de Carnaval andei preocupado em afastar-me da plástica folia da data. Entrei no cinema e passou-me à frente dos olhos o "Slumdog Millionaire". Pensei que afinal o Carnaval não tinha ficado à porta, entrara comigo na sala. Há ali um irritante paternalismo de primeiro-mundistas a olharem o Terceiro Mundo com incómoda piedade, uma coisa que me provoca coceira na pele. Este filme lembrou-me o "Babel" de há alguns anos, que a inteligência crítica desancou, o público amou e o Óscar reconheceu. No "Slumdog" passou-se o mesmo. Só que, desta vez, se não te importas, ponho-me mais do lado da crítica que ataca aquele histerismo todo. Esta noite, vi na televisão o "Touch of Evil" do Orson Welles, um policial à antiga. Foi um regalo:

- Come on, read my future...
- You haven't got any!


Os passageiros do comboio fartam-se de ler coisas de uma ligeireza estupidificante (quando não é o Destak poluidor de estações), mas hoje havia uma senhora com o livro do Gonçalo Amaral, esse carroceiro armado em pê jota. Sorri e continuei a ler o meu Vladimir Nabokov (a "Lolita", que até agora só tinha visto adaptada ao cinema). No café lá estavas tu mais as tuas sandálias pretas. Tens um jeito muito seguro de cruzar e descruzar os pés enquanto lês esse livro grosso que trazes sempre, enquanto dás dentadas femininas na sandes de queijo e inundas tudo na boca com os golinhos que sorves do galão. A essa hora, já eu me debruço sobre o jornal e a torrente tragicómica de enredos cá do burgo e dos outros mundos, pequenos como o nosso. Nunca te direi isto mas, mesmo sabendo que não devo avaliar um livro pela capa, desconfio muito disso que andas a ler. Parece-me uma daquelas xaropadas esotéricas que provam por A mais B que há uma luz, uma força que nos guia, uma sombra que se arrasta connosco. O que te vale são as tuas bonitas sandálias pretas.


Sem comentários: